terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

Lost for words

Dizemos, e eu digo, que vivemos muitas vezes.
Julgo lembrar-me dessas outras vidas e sei-as. Sei que existiram, sei que as vivi mas começam a ser apenas um registo racional.
Leio-as e emociono-me. Como é que podemos emocionarmo-nos verdadeiramente se já não  sentimos o que subjaz aquelas palavras? Porque afinal de contas o sentimento persiste silencioso ou porque não nos lembramos absolutamente de nada? Choramos a história comovente de outrem, as palavras elegantes, as personagens torturadas.

E se já não for eu aquelas palavras? Naquele tempo parecia ter um conhecimento profundo de mim própria: uma identidade.

A vida doia-me, as palavras doiam-me, sentia profundamente, vivia portanto. E depois.. depois de muitos e patéticos passos em falso, desejei não inspirar os ar tão fundo nos pulmões. Usar de uma respiração leve, suficiente. Evitar as feridas latejantes.

Mas a identidade perdeu-se, juntamente com as feridas, com ar frio, com as horas perdidas, as palavras escritas, as declarações de amor. Fica esta banalidade sem rasgo, a cordialidade, o caráter, a correção.

quarta-feira, 8 de março de 2017

"The story of your life is not your life. It is your story." - John Barth

sábado, 20 de agosto de 2016

Houve uma altura que pequenas superstições me davam prazer. Pedir um desejo quando o relógio marcava capicua, ler o horóscopo, deixar que interpretassem a palma da minha mão. 
Hoje, se dou por mim, por hábito, a assinalar mentalmente um qualquer destes eventos, recuo rapidamente.
Como uma ferida onde sopra um vento frio ou na qual se coloca álcool. Evito. 
Acreditar seria uma inocência que já não me fica bem e expõe-me.

terça-feira, 28 de abril de 2015

O confiteor do artista

"O estudo do belo é o duelo em que o artista grita de pavor antes de ser vencido"

Charles Baudelaire in Spleen de Paris

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Idem

Eu tinha deixado de ser um escritor de contos e ensaios razoavelmente maus, e passara a ser um Inspetor de Alfândega razoavelmente bom.

In A Letra Escarlate de Nathaniel Hawthorne

domingo, 25 de janeiro de 2015

Num dia claro e frio. Subo a rua. Imagino que te encontro e encontro. Temos poucas palavras para dizer e apetece-me insultar-te pelas pequenas ridicularias que me disseram sobre ti.

Nada disso importa. Ao invés, explico-te que não podes surgir assim em ruas organizadas e frias em manhãs claras. A não ser que o faças diariamente e sejas banal. 

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

tu és ao mesmo tempo isso tudo e muito melhor que isso.

Voyer III

Abandonei este espaço durante muito tempo. Não sei porquê. Um dia não foi conveniente, no outro não a vi. Quando dei por mim já não me lembrava do caminho até aqui. Lembrava-me mas não ficava a caminho.

Hoje apercebi-me que estava sentado nesta confeitaria, onde muitas outras vezes me sentei tremendo de excitação. O cheiro é-me perfeitamente familiar, vi até que o empregado insignificante me sorria. Terá pensado que mudei de casa ou de emprego e que a vida me afastou dali. Pode até supor que estou contente por ter voltado hoje para lanchar. Mas não. O dia está feio e nada o torna mais bonito visto daqui. Suponho, no entanto, que poderia ser interessante vê-la e sinto essa curiosidade aguçar-se dentro de mim lentamente. Olhando para o relógio sei que tenho poucos minutos antes da confeitaria fechar e pondero os outros locais de observação. É engraçado que colocado nesta situação rapidamente o meu corpo reconhece todos os passos e procedimentos. É como sentir qualquer coisa a propósito de uma música ou de um cheiro, um transporte rápido para outra qualquer versão de nós.

Foi muito tempo.

Não vale a pena. O dia está molhado e escuro. Desisto e pago a conta. Saio.

Enquanto meto a chave à porta do carro vejo o seu reflexo nos charcos de água escura que se formam no alcatrão. Levanto rapidamente os olhos e sobressalto-me com a possibilidade. E, subitamente apercebo-me... ela é tão banal quanto eu.

(fim)
O próprio. Os filhos da puta são muito dados a ter sorte na vida...
Nada a fazer.

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Acordei a chorar porque me tinhas esquecido, porque me ignoravas e te encontravas comigo por piedade. E agora desejo adormecer e encontrar-te outra vez, mesmo que te entreveja apenas e sofra. Mesmo que acorde novamente presa num nó de lágrimas, ciúme, despeito e saudades infinitas de ti.
Sei com certeza que não me amarias agora.

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Useless

Quando lhe falam nisso fica cheia de nojo. Uma repulsa que surge na forma de lágrimas e raiva. O discurso torna-se subitamente fluido e político sem aquela necessidade de racionalizar. No fundo é simples... Se tivesse que dize-lo numa entrevista de televisão ia sentir-se estúpida, sem argumentos, acrítica como às vezes acontece quando fala com o seu tutor. Sabe que sabe do que fala. E é mais simples quando não há crítica nem julgamentos.
O que lhe falta realmente é a capacidade de tomar decisões. Rápidas. Qual Castorp deixa que os anos deslizem. Encontra um interesse, estuda-o e abandandona-o. Sobre ele aprendeu mais do que a maioria mas nunca o suficiente para ser especialista. Por isso se desinteressa - não faz sentido substituir-se às multidões que se papagueiam até à náusea. Consumiram-se mais algumas semanas. Formam-se pequenos objectivos transitórios e as metas sucessivas de meia de dúzia de dias multiplicam-se em meses infindos e nebulosos.
Por isso o nojo é uma forma de repulsa contra si própria, sente-se responsável e com razão. O que a impede? A fome? O frio? A morte? Não. O tédio. A pior forma de inutilidade.

26 jan vinte-doze.

Deitava-se e tinha sempre as mesmas imagens na cabeça. Duas. Três. Sempre as mesmas duas ou três. E a culpa que vem com elas.
Dias de sol e alcatrão quente. A mota a deslizar pelas ruas, o ar morno a rodea-la. A sensação de solidão e liberdade que se sente sempre que se anda de mota. E de dinamismo e fluidez. Uma cidade plana, poeirenta, suja, demasiado seca, aquelas buzinas enervantes que não paravam nem por um segundo, que a sobressaltavam e de que sente agora saudades.
Esta é apenas uma das imagens desdobrada nos seus vários cambiantes. Seca ou inundada. Chuva e a mota parada numa rua inundada. Fragmenta ainda mais. O calor, a humidade, a pele muito mais suave, a cor saudável, as pernas descobertas, o casaco no guarda-roupas, as sandálias, as sabrinas, os chinelos e nada mais que isso. E que estúpido a felicidade estar tão dependente do clima. Ela fecha os olhos e receia desejar sempre tempos passados, achar sempre que o sorriso ficou para trás da esquina que acabou de dobrar, tem medo de inverter a marcha, contornar novamente a esquina e nada daquilo lhe trazer qualquer satisfação. Sabe-o muito bem, e por isso faz o percurso dos dissabores e do isolamento, das saudades, do ser proscrita e mal-diz as pequenas facilidades. Deseja sentir a força que sentia quando entrou no avião sem olhar para trás, sem chorar, sem se despedir com abraços, os olhos cheios de futuro e de esperança. Agora é que ia ser pensava. Hoje deita-se uma vez mais e pensa, e se foi?
Cerra os olhos com mais força. Procura a confusão de cores e escalas que trazem consigo o sono. Quer adormecer e acordar esperta como ele lhe diz milhares de vezes. Tem a certeza que há tanta verdade nas palavras dele. Nisto também. A merda da verdade que não nos serve para nada. Truth is over rated. O pensamento está sobrevalorizado, a razão também, juntamente com a lógica, a moral, e o raio que o parta que não traz conforto nenhum.
Só aconteceu uma vez. Não sem dissabores. Houve uma vez em que ela se cruzou com aquela amiga e, já não sabe bem o que disse, provavelmente guinchou qualquer coisa de transbordante alegria. Era a naturalidade sem culpa, sem ses. Recorda muito bem todos os milhões de ses que se seguiram mas permaneceu sempre o sentimento de naturalidade e intuição naquele encontro. À noite quando fecha os olhos, ele está sempre lá. Cada vez menos nítido, com menos pormenores, mudo, quase sem qualquer cheiro, desvanece um pouco mais em cada noite. Surge contudo como uma extensão natural que a leva a perguntar como é possível sequer as coisas não serem sempre assim. Sente que tem de negociar tudo. E não se trata de as coisas não serem negociáveis, são, claro. É a necessidade de negocia-las.

sábado, 2 de junho de 2012

Em Todas as Ruas te Encontro

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto    tão perto    tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco

Mário Cesariny, in "Pena Capital"

domingo, 27 de maio de 2012

Copy paste

Muitas vezes se via confrontada com pequenos fragamentos do seu passado. Naquele fim de tarde passou um que é taxista. Sabia-se que transportava as prostitutas daquele prédio de pequenos apartamentos até aos seus locais de trabalho e que, no final da noite, as trazia em segurança. Este homem gostava muito dele, discutiam futebol e o taxista, casado com a senhora morena que fumava demais, defendia as cores do Benfica.

Nesse tempo, quando se cruzavam todos, cumprimentavam-se e, por delicadeza, quando se encontrava com ela, repetia o sorriso. Agora, quando se cruza com ela, não se lembra. Ou finge não se lembrar. Ou também lhe parece a ele ter encontrado um pequeno farrapo de um tempo distante qualquer. Ela pensa, quando estas dimensões se encontram, que perdeu algo. Não tem a certeza de se reconhecer no presente que é.

sábado, 29 de outubro de 2011

die motherfucker!

já que tens morrido todos estes dias. e continuas morto como o raio que te parta. e a tua morte nunca mais morre de vez.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Aquém

"Ela tem algo que eu pensava ter".

No dia que aquilo que lhe era natural foi antecipado ou, dir-se-ia, sujeito a ensaio, todas as imagens sobre si própria desapareceram. A vida não nos reserva nada de grande, nada de brilhante. Limita-se a uma sucessão de dias menores. O golpe de asa que lhe estava reservado afinal nem sequer existia.

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Nas entradas e saídas de uma catedral em dia de cerimónia real e austera, encontram-se numa antecâmara. Enquanto decorrem os cânticos, lá dentro, isolados por pesadas portas de madeira, juntam-se os corpos.

terça-feira, 26 de abril de 2011

do gostar

"E hoje à noite, eu mato algo em ti, depois deixo-te voltar a Londres, aos trópicos, ou ao inferno e continuas a ser meu amigo."


As velas ardem até ao fim de Sándor Márai

sexta-feira, 8 de abril de 2011